Psicoterapia
Embora estranho - te ajudo a desabar – foi a forma mais sincera que encontrei para explicar o que posso oferecer como psicoterapeuta. Entendo que pode parecer desnecessário buscar ajuda especializada para isso, afinal, quem procura psicoterapia talvez já sinta que desabou, ou esteja prestes a desabar. O que não é tão óbvio é que a forma como desabamos é relevante para o resultado do desabamento e é nisso que consiste um bom processo em psicoterapia. Confesso que fiquei surpresa ao encontrar no livro "Alfabeto das Colisões" do professor, filósofo e psicanalista, Vladimir Safatle, um ensaio que reflete essa ideia. Ele afirma que
“as pessoas se livram das descrições patológicas que lhes foram fornecidas através da capacidade de saber habitar um tempo de desabamentos, um tempo de desamparo”
É a partir dessa experiência de desabamentos e desamparo que o paciente pode, durante o processo terapêutico, ter a oportunidade de confrontar os pontos onde se vinculam desejo e destruição. Safatle explica:
"Se o processo de transferência* permitir sustentar o segundo tempo até ele reconfigurar o primeiro, é possível que ele paulatinamente consiga inscrever no interior da vida o que até agora não tinha como inscrever. É possível construir uma singular confiança a partir dos colapsos que é o começo da emancipação efetiva” (Safatle, 2024).
Nesse sentido, "ajudar alguém a desabar", é o aspecto mais raro, precioso, particular e difícil de um processo terapêutico. Significa sustentar o segundo tempo da queda que ocorre quando o paciente adquire uma nova percepção, até que ele possa, com essa nova percepção, reconfigurar o primeiro tempo de suas representações permitindo, que ocorra alguma transformação.
Além da clínica, conforme aprendi com as práticas de meditação, não se trata de se “fixar” nesse novo lugar para o qual a transformação aponta.
Trata-se, na verdade, de adotar um modo de ser que priorize cada vez mais a ampliação da nossa capacidade lúcida de percepção, em vez do desejo egocêntrico por identificação que busca o tempo todo se afirmar sendo isso ou aquilo. Nesse novo modelo, rotular algo simplesmente como normal ou patológico torna-se obsoleto. Safatle também destaca a importância de uma terapia onde o paciente possa retirar de suas singularidades o que foi considerado patológico ou doentio pelos diagnósticos. Isso significa (re)conhecer o que existe além do que um diagnóstico pretende resumir ou dizer. Algo semelhante ao que Contardo Calligaris, outro psicanalista, afirma:
“o propósito de uma terapia não é levar alguém a ser normal, mas a descobrir e respeitar seu próprio desejo”.
É crucial lembrar a diferença entre “descobrir e respeitar seu próprio desejo” e “atuar ou impor o próprio desejo”, pois, fazer análise ou psicoterapia não tem nada a ver com alimentar o imperialismo de um “eu” e “seus desejos”.
Embora um processo terapêutico que priorize a capacidade de perceber, em vez da vontade de se auto-afirmar enquanto ser, nos torne melhores mediadores e conciliadores em situações de divergência, não nos tornamos “passivos” ou facilmente enganados, como muitos poderiam imaginar. Paradoxalmente, nos tornamos mais intransigentes do que antes, com aquilo que não deveríamos abrir mão, ou não está aberto à negociação, pois com uma percepção ampliada temos melhores condições de circunscrever nossos desejos e objetivos nos termos da realidade, sem perder tempo com propostas nas quais não podemos ou não queremos realmente nos envolver, afinal, como diria Michel Foucault:
"é a ligação do desejo com a realidade que possui uma força revolucionária."
*A transferência é um dos conceitos mais importantes da teoria psicanalítica e se refere a um processo pelo qual os sentimentos, desejos e expectativas de um indivíduo são inconscientemente projetados em outra pessoa, geralmente o terapeuta.